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Qua, 30 Novembro 2022 11:50

Entrevista Nota 10: Ana Cláudia Coelho e a conscientização sobre violência de gênero

Docente e especialista em Psicologia Hospitalar, Ana Cláudia Coelho compartilha sua trajetória no atendimento hospitalar a mulheres vítimas de violência e explica a importância do diálogo sobre o tema na sociedade


Ana Cláudia é membro do Laboratório de Estudos Sobre Psicanálise, Cultura e Subjetividade (LAEpCUS) da Pós-Unifor (Foto: Arquivo pessoal)
Ana Cláudia é membro do Laboratório de Estudos Sobre Psicanálise, Cultura e Subjetividade (LAEpCUS) da Pós-Unifor (Foto: Arquivo pessoal)

O Brasil ocupa o quinto lugar no ranking mundial de feminicídios, conforme aponta o Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos (ACNUDH). Essa estatística constata um sintoma extremo de uma série de fatores sociais e culturais que permeiam um tema grave e presente no dia a dia de muitas pessoas, principalmente mulheres: a violência de gênero.

Apesar de ter ganhado maior visibilidade e crescido o número de discussões e políticas de combate nos últimos tempos, esse assunto – que tem raízes tão profundas quanto complexas na sociedade – ainda vai levar um tempo para ser resolvido de vez. Para a psicóloga Ana Cláudia Coelho Brito, o debate sobre a problemática tem sido e continuará sendo de alta relevância nos próximos anos.

“Isso porque para desmontar e desconstruir essa lógica machista e misógina demanda tempo. É um processo. Se faz necessário que a gente realmente se debruce, estude, se aprofunde e encontre formas de romper com essa lógica de funcionamento dentro da cultura e que acaba sendo reproduzida nos discursos, nas instituições e pelas pessoas”, explica a professora do curso de Psicologia na Universidade de Fortaleza, da Fundação Edson Queiroz.

Mestre em Gestão Educacional pela Universidade Estadual Vale do Acaraú (UVA) e doutora em Psicologia pela Unifor, Ana Cláudia é especialista em Psicologia Hospitalar, área que atua desde sua graduação. No ramo, ela entrou em contato com a realidade de diversas mulheres que sofreram agressões físicas decorrentes dessa opressão estrutural.

A violência de gênero é um dos assuntos pesquisados pela docente como membro do Laboratório de Estudos Sobre Psicanálise, Cultura e Subjetividade (LAEpCUS), do Programa de Pós-Graduação em Psicologia (PPGP) da Unifor, junto a outros pesquisadores e alunos. Na Entrevista Nota 10 desta semana, Ana Cláudia compartilha sua trajetória no atendimento hospitalar a mulheres vitimadas e explica a necessidade do diálogo sobre o assunto tanto na academia quanto na sociedade.

Confira na íntegra a seguir.

Entrevista Nota 10 – Professora, poderia compartilhar conosco um breve relato de sua trajetória profissional e explicar como surgiu o interesse na área da psicologia hospitalar?

Ana Cláudia Coelho – Há 30 anos, quando estava na graduação, a psicologia hospitalar ainda não era um campo muito bem estruturado. Essa estruturação começa aqui no Ceará dentro dos hospitais universitários, como o Walter Cantídio (HUWC), com a psicóloga Tereza Cristina Holanda, e a Maternidade Escola Assis Chateaubriand (MEAC), com a psicóloga Lúcia Bandeira. Eu tive a oportunidade de estagiar na MEAC sob a coordenação de Lúcia, e foi uma experiência muito importante para mim porque trabalhei de forma bem intensa com as demandas que diziam respeito ao feminino. Trabalhava com grávidas de alto risco, gestantes que eram portadoras de HIV ou que apresentavam alguma intercorrência no período gestacional.

Nessa experiência, ainda tive a oportunidade de já atender algumas mulheres que buscavam o serviço por sofrerem também violência ou então elas traziam esse relato da violência contra a mulher, violência doméstica, violência conjugal. Isso acabava aparecendo na escuta que eu realizava com elas. Quando me graduei, a Lúcia Bandeira, que coordenava o Serviço de Psicologia, ela me convidou para compor o quadro de psicologia de lá como psicóloga e permanecer nessa mesma unidade em que havia estagiado. Fiquei muito feliz porque não é tão fácil você ser recém-formada e já conseguir um espaço de inserção. Permaneci lá na instituição por 16 anos. A partir desse contexto, de trabalhar com questões relacionadas à mulher e ao feminino, pude entrar em contato com diferentes tipos de demandas, inclusive a demanda da violência.

Depois saí da MEAC para entrar em outra instituição hospitalar, que foi o Instituto Doutor José Frota (IJF), e já estou lá também há 16 anos. Eu estou nesse campo de atuação há bastante tempo! E lá no IJF eu também tenho a oportunidade de estar em contato com as mulheres que sofrem violência porque o Instituto recebe as consequências da violência da nossa sociedade. É um hospital municipal, mas recebe a demanda de todo o estado, inclusive de outras regiões. Lá eu atendi mulheres que chegavam politraumatizadas em decorrência dessa agressão extrema, que várias vezes levava a paciente a buscar um hospital com o perfil do IJF para passar lá um tempo de internação e se submeter a muitas intervenções cirúrgicas.

Ainda hoje eu tenho a oportunidade de atender e de escutar essas mulheres, inclusive participo no IJF da Comissão Intra-Hospitalar que trabalha a questão da violência de gênero. Essa sempre foi uma temática que esteve presente na minha atuação como psicóloga desde o início. Sempre trabalhando dentro das instituições públicas na defesa do Sistema Único de Saúde (SUS), na garantia do direito à saúde por acreditar na importância de que seja de fato garantido a toda população.

Entrevista Nota 10 – No que consiste a violência de gênero? Esse tipo de agressão é cometida exclusivamente contra mulheres ou existem outras parcelas da população que sofrem com isso?

Ana Cláudia Coelho – Quando a gente fala de violência de gênero, a gente não coloca em evidência apenas a violência contra a mulher, mas o que existe é uma violência que se endereça a todos que estão fora de uma matriz heteronormativa. A mulher sofre violência porque estamos inseridas dentro de uma cultura patriarcal e machista, que coloca a mulher num lugar subalterno, mas toda a população LGBTQIA+ também sofre a incidência desses discursos heteronormativos – que produzem exclusão social, inferioridade, não conformidade, onde todos os sujeitos que estão fora dessa lógica são considerados “seres abjetos”, que podem ser expulsos ou excluídos pela sociedade por serem “detritos”, “dejetos” dessa comunidade. Então a violência de gênero não recai apenas sobre a mulher, mas também recai sobre todas os outros seres que não se enquadram nessa lógica heteronormativa.

Entrevista Nota 10 – No Ceará, 7.568 casos de violência contra a mulher foram registrados entre os meses de janeiro e maio deste ano, segundo a Secretaria da Segurança Pública e Defesa Social (SSPDS). Essa estatística chega a reverberar dentro dos hospitais? Como a psicologia hospitalar lida com esses casos?

Ana Cláudia Coelho – Como pontuei na outra resposta, ela acaba chegando, sim, no hospital porque muitas vezes essa mulher apresenta um trauma físico em decorrência dessa violência. Cada vez mais se faz necessário que os profissionais de saúde venham a reconhecer essas demandas de saúde que estão relacionadas às mulheres que sofrem violência, de forma que a gente consiga organizar os serviços para cuidados endereçados a essa demanda específica.

As ações não devem se limitar à cura da lesão física, mas a gente precisa compreender a complexidade que envolve esse fenômeno da violência, que tem agravos físicos e também agravos psíquicos. Muitas vezes, a mulher pode não apresentar o sofrimento físico, mas isso não significa ausência do sofrimento psíquico, que precisa, sim, ser cuidado. Às vezes as mulheres vivem anos de sofrimento de forma muito solitária porque não têm os equipamentos de saúde como um lugar de acolhimento a esse sofrimento. Cada vez mais precisamos abrir espaços de acolhimento para a verbalização dessa experiência de violência, um lugar onde isso possa ser relatado.

Faz-se cada vez mais necessário promover saúde dessa forma e conseguir trabalhar dentro de uma perspectiva intersetorial, porque diante de um caso complexo como esse da violência de gênero, precisamos dialogar com as outras políticas públicas. Ela não fica só no âmbito da saúde, mas precisamos dialogar com o âmbito da justiça, da assistência social, do emprego e renda. Então, isso tudo é muito importante. E a psicologia tem um papel muito importante de promover ações que dizem respeito a essa escuta qualificada às mulheres, a promover esse acolhimento no serviço, nas ações individuais de atendimento psicológico individual – e também coletivo, com grupos de mulheres onde elas possam conversar sobre essas mais diferentes experiências –, assim como na articulação dos serviços da importância desse trabalho em rede.

Entrevista Nota 10 – Você é uma das integrantes do Laboratório de Estudos Sobre Psicanálise, Cultura e Subjetividade (LAEpCUS), que promoveu o colóquio "Violência de Gênero: pesquisas e intervenções no Ceará" no início do mês. Como foi realizar um evento científico que debate um assunto tão vital e urgente?

Ana Cláudia Coelho – É muito importante que a academia traga essa discussão para dentro dela à nível de graduação. A violência de gênero é um assunto que precisa ser debatido e que atravessa os diferentes currículos das mais diferentes formações, não só no campo da saúde, mas do direito, da comunicação. É uma temática transversal importantíssima de ser discutida na universidade. E é um momento também muito rico para a própria pós-graduação porque nos encoraja à produção de pesquisas para construir cada vez mais um arcabouço teórico e científico, que nos leva a entender melhor a dimensão dessa problemática e, quem sabe, inclusive, construir saídas, dialogando de forma interdisciplinar.

Foi isso o que o colóquio fez, tentamos fazer uma discussão interdisciplinar. Chamamos a defensora pública, apresentamos as pesquisas que o nosso LAEpCUS esteve construindo nos dois últimos anos, dialogamos com pessoas que trabalham o tema mulheres a partir da arte, chamamos pessoas para falar da violência contra as pessoas LGBTQIA+. Essa parceria não está apenas aqui, já que a violência de gênero é um fenômeno que ocorre nas mais diferentes culturas. Nós estamos em diálogo e parcerias com uma universidade na França e também tivemos a oportunidade de ter a palestra do psicanalista Jean-Luc Gaspard. É de uma riqueza inominável para a Universidade abrir espaços para dar visibilidade a isso que está sendo pesquisado e, ao mesmo tempo, colocar ali como um uma pauta de discussão importante. Então foi muito bacana essa experiência do Colóquio.

Entrevista Nota 10 – Qual a importância de ações e eventos como este, tanto para a academia quanto para a sociedade, no avanço da discussão sobre a violência de gênero?

Ana Cláudia Coelho – Eu penso ser importantíssimo os espaços como esses, onde o Colóquio trouxe e evidenciou a violência de gênero no estado do Ceará, dando visibilidade a essa problemática e apresentando pesquisas e possibilidades de intervenção. Acredito que isso é de uma riqueza e de uma importância tirar essa questão do âmbito do privado, como algo de uma responsabilidade individual, para algo que é de uma responsabilidade coletiva e social. No Colóquio, apresentamos dois livros que foram publicados recentemente, fruto dessas pesquisas do Laboratório. Ressaltamos o quanto a sociedade civil precisa reconhecer a existência dessa violência e conhecer a dimensão que ela na verdade tem. Acho que a importância do evento está em tirar a problemática desse lugar de invisibilidade e dar um enfoque, além de problematizar, porque nós não temos as soluções, elas são construídas coletivamente.