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Ter, 18 Abril 2023 17:23

Entrevista Nota 10: Clarissa Ribeiro e a conexão internacional entre Ceará e China

Doutora em Artes Visuais e mestre em Arquitetura, ela destrincha a ligação entre tecnologia, ética e artes, além de comentar sua participação no projeto DeTao Masters Academy e no evento “Shifting Cosmologies More Than Human XR”


Clarissa é docente do curso de Arquitetura e Urbanismo e coordenadora do Laboratório de Inovação e Prototipagem (LIP) da Unifor (Foto: Arquivo pessoal)
Clarissa é docente do curso de Arquitetura e Urbanismo e coordenadora do Laboratório de Inovação e Prototipagem (LIP) da Unifor (Foto: Arquivo pessoal)

Quando pensamos em arte, a ligação com o conceito “ciência” não costuma ser a conexão que fazemos logo de cara: enquanto a primeira nos remete ao pensamento subjetivo, a outra nos traz a objetividade como essência. E se adicionarmos o termo "tecnologia" à equação, parece fazer ainda menos sentido, pelo menos superficialmente, a junção entre coisas tão distintas.

No entanto, a proximidade entre essas áreas não é algo improvável, muito menos recente, na história. Basta ver as criações de Leonardo Da Vinci, que tirou da natureza seus estudos matemáticos e biológicos para utilizá-los em suas obras. Ou ainda a aplicação da Teoria das Cores no neoimpressionismo para mesclar cores puras em obras pontilhistas e “enganar” a visão de quem vê — que, inclusive, é a mesma ideia por trás do funcionamento dos pixels na resolução de imagens digitais.

Para a professora, artista e arquiteta Clarissa Ribeiro, a discussão sobre as relações entre arte e tecnologia na sociedade industrial é fascinante na história da arte. “Na sociedade pré-industrial a relação com a tecnologia é distinta, antes do maquínico. Na sociedade industrial, a tecnologia passa a se confundir com o maquínico. Nas sociedades pós-industriais de hoje, o maquínico se virtualiza, é algorítmico”, explica.

Hoje, com a ascensão da inteligência artificial (IA), diversos trabalhos têm abraçado as novas tecnologias para realizar inovações artísticas. Um exemplo disso é a obra “Confluência de Dados”, idealizada por Clarissa, que consiste em uma série de esculturas geradas a partir de dados, envolvendo ainda computação física, programação e a produção do objeto utilizando fabricação digital.

“A IA e a sofisticação das plataformas para realidade estendida contribuem para ampliar as possibilidades de explorações de uma estética que nasce da colaboração com a máquina, à qual nos vemos cada vez mais integrados”, pondera.

Doutora em Artes Visuais pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA-USP) e mestre em Arquitetura pelo Instituto de Arquitetura e Urbanismo (IAU-USP), Clarissa coordena o Laboratório de Inovação e Prototipagem (LIP) da Universidade de Fortaleza — vinculada à Fundação Edson Queiroz —, onde elaborou o projeto.

Possui pós-doutorado pela Fulbright em Arte e Ciência, junto ao Art|Sci Center and Lab da Universidade da Califórnia (UCLA), com desdobramentos em Xangai, na China. Lá, participou da estruturação e implementação do bacharelado em Arte e Tecnoética no DeTao Masters Academy, onde está passando uma temporada agora.

Na Entrevista Nota 10 desta semana, Clarissa destrincha a ligação entre tecnologia, ética e artes, além de comentar sua participação no DeTao Masters Academy e no evento “Shifting Cosmologies More Than Human XR”.

Confira na íntegra a seguir.

Entrevista Nota 10 – Professora, você possui uma formação inicial em Arquitetura e Urbanismo, contando ainda com um mestrado na área, mas tem seguido um caminho fortemente intrincado ao campo artístico. Em que momento a arte cruzou com a tecnologia em sua carreira, e por que decidiu seguir esse caminho? 

Clarissa Ribeiro – As publicações internacionais na área de arquitetura e urbanismo de finais da década de 1990, quando eu cursava o bacharelado, com as quais tive contato naquele momento, como a AD Architectural Design e Domus Magazine, apresentavam não apenas a produção de arquitetos que exploravam o pensamento e as tecnologias computacionais, como Greg Lynn e Marcos Novak, que já incluíam realidade virtual e modelagem algorítmica, mas o trabalho de artistas que produziam arte vinculada ao pensamento cibernético, arte computacional, digital, eletrônica. Entre os maiores nomes nesse campo emergente, muitas mulheres, como Char Davis e Victoria Vesna, nos Estados Unidos, e, no Brasil, Luisa Paraguai, Silvia Laurentiz, Suzete Venturelli, Rejane Spitz e Tania Fraga (também com graduação em Arquitetura).

Tive a felicidade de conhecer a Luisa Paraguai durante o mestrado. Foi ela que fez as pontes entre mim e o professor Gilbertto Prado, que foi meu orientador do doutorado na ECA-USP, e foi quem me apoiou na intenção de me vincular ao Planetary Collegium no doutorado-sanduíche. Minha pesquisa, nesse momento em que integrava o grupo Poéticas Digitais, propunha entender os coletivos de criação em arte e tecnologia a partir do comportamento emergente, como sistemas complexos adaptativos. Foi nesse momento que expus minha primeira instalação de arte eletrônica, “Instantes de Metamorfose” (2011), que usava captura de movimento ao vivo e projeção para que uma performance pré-gravada em vídeo acompanhasse os movimentos da audiência, explorando recursos como vídeo em loop, recursividade, interação.

Não vejo meu percurso como “uma escolha”. Somos sistemas integrando outros sistemas — aventura da emergência a partir das conversas, das trocas, dos encontros. Por isso me esforço para participar de eventos internacionais. É a oportunidade de conversa que transforma — o processo de construção do eu é metamórfico.

Entrevista Nota 10 – O que é a tecnoética e como ela se aplica às artes?

Clarissa Ribeiro – Tecnoética se refere, no contexto do que seria “a arte dos novos meios”, eletrônica, computacional, às tendências que exploram e investigam a convergência entre Arte, Tecnologia e Consciência (a mente), o que está implícito no termo ‘noesis’ (arte, tecnologia e noesis). Do grego noēsis, onde noos se refere à percepção mental, a intenção é dizer de uma arte que privilegia a expansão da consciência através de processos informacionais, locais e não locais, computacionais ou bioquímicos ou quânticos.

O termo foi proposto pelo Professor Roy Ascott com a intenção de abrigar um pensar inclusivo em que se explora a transformação do eu (self, em inglês) e suas expressões no e pelo uso das tecnologias computacionais em rede, a possibilidade de entender o afeto como o impulsionador do uso e da sofisticação de tecnologias para conversas e criação em rede — abraços telemáticos. Em 1968, Roy Ascott escreve um manifesto da arte cibernética e, ainda hoje, lendo e relendo, continua a influenciar meu pensamento como professora e artista — “Behaviorables and Futuribles”. De fato, merecedor do Golden Nica como visionário pelo Ars Electronica

Entrevista Nota 10 – Hoje muitos movimentos da tecnologia têm afetado o universo artístico de maneira cada vez mais direta, como a chegada das imagens geradas por inteligência artificial (IA) e chatbots que escrevem textos completos por meio de comandos simples, além da própria realidade estendida (XR, sigla para Extended Reality). Como a ciência tem estudado os impactos disso na arte? A tecnoética entra nessa equação?

Clarissa Ribeiro – A IA e a sofisticação das plataformas para realidade estendida contribuem para ampliar as possibilidades de exploração de uma estética que nasce da colaboração com o maquino, em que nos vemos cada vez mais integrados, comportamentalmente. 

A grande diferença, penso, é a aceleração dessa integração, dessa parceria, que, sim, tem seus perigos. De qualquer forma, tento apostar nas possibilidades de conversa e solução de problemas e expansão da consciência planetária através do diálogo ampliado e potencializado pelo uso das tecnologias. As reflexões de Lev Manovich sobre Estética e Inteligência Artificial são das mais interessantes, recomendo a leitura de seus artigos e livros a respeito. 

Roy Ascott considera que, após a Segunda Guerra Mundial, entramos em um momento que define como “era do diálogo”. Acredito que essa seja a chave: evitar conflitos e reduzi-los, utilizando as oportunidades de conversa, interação e expressão para lutar por direitos humanos, acesso ao conhecimento, conscientização sobre impactos ambientais.

Entrevista Nota 10 – Entrando em uma discussão mais filosófica do assunto, até que ponto a tecnologia é apenas um suporte ou ferramenta para a produção artística do ser humano e passa a ser a própria arte?

Clarissa Ribeiro – A discussão sobre as relações entre arte e tecnologia na sociedade industrial é de fato fascinante na História da Arte. Temos Edgar Wind advogando que, assim como nas discussões em torno do “problema de medição em mecânica quântica” em que os resultados já existem como realidade nos instrumentos de medição, o resultado (trabalho artístico) está nos instrumentos (tecnologia) e mídia utilizados no processo de criação.

Não considero que seja interessante, no entanto, dizer de forma reducionista que “a tecnologia seja a arte”. Os processos de produção artística são complexos e emaranhados a processos de construção e expressão do indivíduo e de grupos — relações ecológicas, cosmológicas. Na sociedade pré-industrial, a relação com a tecnologia é distinta, antes do maquínico. Na sociedade industrial, a tecnologia passa a se confundir com o maquínico. Nas sociedades pós-industriais de hoje, o maquínico se virtualiza, é algorítmico. A arte transcende essas relações ou as navega de forma bastante complexa. Somos nós tentando encontrar sentido, navegando a história no pós-história adentro.

Entrevista Nota 10 – No evento “Shifting Cosmologies - More Than Human XR” (“Mudando Cosmologias - Mais do que o XR Humano”, em tradução livre), que acontecerá no dia 28 de abril, você apresentará tanto o Laboratório de Inovação e Prototipagem (LIP) da Unifor como seus trabalhos realizados aqui. Qual a importância de ações como essa para a internacionalização da Universidade de Fortaleza e na ampliação da rede de colaboração com outras instituições pelo mundo?

Clarissa Ribeiro – Em um evento como esse, parte de uma série de ações desenvolvida pelo XResearch Cluster — liderado por Benjamin Bacon e Boris Debackere e em colaboração entre o "V2_Lab for the Unstable Media”, da Holanda, e o “Design, Technology and Radical Media Lab”, da Duke Kunshan University, da pesquisadora e artista Vivian Xu —, tendo a oportunidade de trocas com pesquisadores artistas interessados no diálogo criativo entre Arte, Tecnologia e Ciências, consigo ampliar as possibilidade de colaboração e expandir o conhecimento desses artistas sobre a produção em arte e tecnologia no Brasil, no Nordeste brasileiro, incentivada e com o suporte da Universidade de Fortaleza.

Em contrapartida, também tenho a oportunidade de conhecer a produção dos colegas vinculados aos projetos que abrigam, na China e na Europa. Isso tudo faz com que a rede da qual fazemos parte, internacionalmente, se fortaleça e se amplie. E temos a oportunidade de influenciar futuras gerações de estudantes interessados em discussões que envolvem, por exemplo, o uso criativo de XR à nível internacional.

O formato do evento considera promover apresentações e entrevistas que instigam uma conversa discursiva sobre as tecnologias XR e seu lugar em nosso mundo antropocêntrico. A ocasião será gravada e acontece online e presencialmente, em formato híbrido. Os organizadores acreditam que essa tecnologia XR pode ser usada como uma estrutura teórica e um “kit de ferramentas de navegação” para reimaginar nossas cosmologias na mudança de uma realidade antropocêntrica para uma realidade ecocentrista abrangente, para além da experiência humana. A ideia, segundo os organizadores, é que a iniciativa seja um primeiro passo para gerar conversas sobre XR não centradas no ser humano, explorando a interseção com a filosofia, teoria crítica e prática criativa em colaboração com as humanidades, ciências e tecnologias.

A caminho da China, tive a oportunidade de presidir um painel no evento da College Art Association em Manhattan (CAA), em Nova Iorque, ao qual convidei um grupo de colegas para discutirmos, através de nossos trabalhos artísticos e interesses teóricos, “Ecologias como Cosmologias”. O trabalho que apresentei no evento da CAA — “We Bring Your Microbiome Back” (2022-2023) — foi desenvolvido nos jardins da Unifor, explorando conversas cross-escalas entre o nosso microbioma e a microbiota das cascas das árvores no campus (para saber mais, siga no Instagram a hashtag #webringyourmicrobiomeback).

Entrevista Nota 10 – Você está como professora associada do bacharelado em Arte Tecnoética, do Roy Ascott Studio, e participa do projeto especial DeTao Masters Academy — ligado ao Shanghai Institute of Visual Arts (SIVA) —, ambos na China. Como se dá essa ponte com o Brasil no estudo da arte e da tecnologia, principalmente na área acadêmica? Qual o diferencial do maior país asiático neste assunto?

Clarissa Ribeiro – O grande diferencial da China — nesse caso, com o projeto DeTao Masters Academy, abrigado pelo SIVA — é a aposta na capacidade transformadora do pensamento ocidental em áreas em que é evidente uma supremacia histórica, como no caso da arte eletrônica. Esse potencial é o de formação estratégica de uma vanguarda chinesa que possa ter influência internacional.

Um dos alunos que ajudei a selecionar para o bacharelado em Arte Tecnoética do Roy Ascott Studio em 2015, antes de retornar para o Brasil, foi admitido agora com bolsa integral para mestrado no Massachusetts Institute of Technology (MIT), por exemplo. E vários alunos têm sido admitidos em programas de mestrado na Europa, como o “Design for Performance & Interaction March” na University College London (UCL). Resultado de investimento na internacionalização.

A Unifor ainda não tem um curso de graduação em Arte e Tecnologia, mas penso que esse seja um passo futuro viável, considerando as atuais tendências de reformulação curricular e ampliação das contaminações, colaborações e integrações criativas entre áreas, dentre as quais o LIP pode ser citado como iniciativa pioneira com bons resultados.

Com a construção do Complexo Cultural Yolanda e Edson Queiroz, e considerando os novos projetos institucionais inaugurados recentemente em Fortaleza, como o MIS e a Pinacoteca do Estado, penso que um curso de graduação em Arte e Tecnologia ou, ousando mais um pouquinho, em Arte, Tecnologia e Ciência — que combine as expertises de professores de centros como CCT, CCG e CCS, não excluindo o CCJ —, possa ser uma iniciativa revolucionária que, na capital cearense, a Unifor tenha condições de promover, talvez em um modelo similar ao DeTao, com parcerias internacionais.

Acredito que minha experiência aqui na China e as parcerias que podem ser construídas, possam contribuir para pensarmos em conjunto possibilidades de integração da arte vinculada ao pensamento tecnológico e científico, no cenário acadêmico da Universidade de Fortaleza e do Brasil.