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Qui, 6 Maio 2021 20:25

Entrevista Nota 10: Clerton Martins e Cynthia Melo destacam os impactos da pandemia no cotidiano social

Professores e pesquisadores da Unifor lançaram a obra "Ensaios da pandemia: o isolamento social entre caos e recriação da vida"


Cynthia Melo e Clerton Martins, professores de Programa de Pós-graduação em Psicologia da Unifor (Fotos: Ares Soares)
Cynthia Melo e Clerton Martins, professores de Programa de Pós-graduação em Psicologia da Unifor (Fotos: Ares Soares)

Sob a ótica da Psicologia, os desdobramentos da pandemia de Covid-19 em nossas vidas ganham diversas reflexões. Para os pesquisadores Clerton Martins e Cynthia Melo, professores do Programa de Pós-graduação em Psicologia da Universidade de Fortaleza, instituição da Fundação Edson Queiroz, essas mudanças atravessam o caos e resultam em formas de recriar a própria vida.  

Juntos, eles assinam a autoria do livro "Ensaios da pandemia: o isolamento social entre caos e recriação da vida", organizado pelo doutorando Welligton Barbosa Junior. Recentemente, a obra foi agraciada com o Edital 01/2020 – Chamada para Projetos de P&D que visam o enfrentamento da COVID-19, lançado pela Diretoria de Pesquisa, Desenvolvimento e Inovação da Unifor no ano passado, e será publicada em formato digital e impresso, pelo selo da Editora Appris.


Obra ganhou publicação digital e impressa (Foto: Ares Soares)

Com exclusividade ao Entrevista Nota 10, Clerton Martins e Cynthia Melo destacam os impactos da realidade da pandemia em nosso cotidiano. Confira na íntegra:

Entrevista Nota 10 - Professor Clerton e professora Cynthia, para iniciarmos, gostaria que vocês se apresentassem…

Cynthia Melo - Sou psicóloga, doutora em psicologia pela UFRN. Bolsista em produtividade em pesquisa do CNPQ. Professora do Programa de Pós-graduação em Psicologia da Unifor e coordenadora do Laboratório de Estudos e Práticas em Psicologia e Saúde (LEPP- Saúde).

Clerton Martins - Sou psicólogo e historiador. Mestre e doutor em Psicologia pela Universidade de Barcelona/Espanha. Pós-doutor em Estudos do Ócio pela Universidad de Deusto/País Vasco (Espanha) e em Estudos Culturais - Universidade de Aveiro (Portugal) e também professor do Programa de Pós-graduação em Psicologia da Unifor.

Entrevista Nota 10 - Como se deu a concepção de "Ensaios da Pandemia", agraciado com o Edital 01/2020 – Chamada para Projetos de P&D que visam o enfrentamento da COVID-19?

Cynthia Melo - Desde o início da pandemia, seguindo a tendência internacional, nos dedicamos a investigar diferentes fenômenos relacionados à pandemia de Covid-19, como saúde mental, fatores de adesão às orientações de contenção da pandemia, morte e luto etc, para alimentar as bases de dados científicas, por meio da publicação de artigos, mas também para oferecer respostas e subsidiar as orientações de cuidado, prevenção e promoção de saúde. Contudo, ao longo do processo percebemos que isso ainda não era suficiente, precisávamos de uma outra forma de linguagem, que chegasse à população e que pensasse, além do caos anunciado na mídia e redes sociais, também propostas de ressignificação de vida e cuidado.

Entrevista Nota 10 - De que forma a obra analisa, sob a ótica da Psicologia, o impacto da pandemia em nosso cotidiano social?

Cynthia Melo - A obra analisa os impactos da pandemia sobre diferentes dimensões, a saúde mental, as relações familiares e da relação pessoa-ambiente no contexto de isolamento domiciliar, os efeitos do isolamento e do home-office sobre a criança e a infância e as experiências de perdas, mortes e lutos.

Clerton Martins - Ao pensarmos o contexto da pandemia vamos observando a partir das novas configurações do tempo social e subjetivo, as novas apropriações da realização do trabalho, da escola, das compras via remotamente, nos convidam a pensar os impactos do momento no cotidiano. Na pandemia, diversas áreas de nossas vidas passaram por mudanças bruscas. A pandemia nos arrancou a característica principal do que nos torna humanos: as interações sociais. As relações de trabalho e familiares foram ressignificadas e entrelaçadas. Da noite para o dia tivemos de nos isolar, usar máscaras e nos distanciar dos outros. Tivemos que reaprender a viver, a lidar com um novo mundo. O ontem passou a ser um mundo antigo, que desapareceu como neblina. E um mundo recém-nascido surgiu para todos. Inesperadamente, o sonho de querer trabalhar em casa e de passar mais tempo com a família transformou-se em pesadelo para muitos. Por um lado, fomos confinados; por outro, os espaços foram invadidos, os limites foram afrouxados, e já não se sabia o que era local de trabalho, mesa de jantar ou sala de aula. Estávamos todos inseguros, não tínhamos como saber se estávamos sãos e salvos, ou se estávamos prestes a ser contaminados. Momentos como esse, de intensa crise, também são caracterizados por trazer à tona o que há de mais íntimo dentro de nós. Nossas vulnerabilidades e temores foram revelados e passamos a conviver com o medo. Medo de ser despedido, medo do desconhecido, medo do futuro, medo de ser contaminado, medo de morrer. A pandemia não fez emergir apenas as nossas fragilidades pessoais, mas também as fragilidades sociais, evidenciando como os grupos vulneráveis se tornaram ainda mais desprotegidos nesse contexto de crise.

Entrevista Nota 10 - Na segunda parte do livro fala-se sobre a “recriação da vida”. Como as pessoas vêm encontrando formas de lidar com seus lutos, perdas simbólicas e afins?

Cynthia Melo - Com a pandemia, além da morte real (física), a Covid-19 impôs diversas mortes simbólicas, como a perda de saúde, liberdade de ir e vir, rotina, planos de vida, interações sociais, que resultaram e um sentimento de luto por ambas as mortes. A partir disso, fomos desafiados a usar uma nova lente para visão de um novo padrão de normalidade. Com isso, foi possível descobrir que o “isolamento de corpos” não significa isolamento de relações e contatos sociais. Assim, foi possível ressignificar as práticas de cuidado e novas estratégias de vivência de rituais de despedida e elaboração do luto.

Clerton Martins - Ao nos depararmos com a realidade da vida posta pelo caos trazido com a pandemia, todas as perdas, todas as mudanças nos convocam a reapropriações sobre esta mesma realidade encoberta por um cotidiano sistematizado e automático ao qual estávamos acostumados.No período de quarentena e isolamento social, as pessoas encontram-se fadadas e coagidas a acessarem a si mesmas. Nem todos conseguem esse acesso pessoal, pois ele depende da vulnerabilidade e da disponibilidade de cada um para transformar o momento de reclusão da pandemia em uma oportunidade para um encontro consigo mesmo. Outrossim, o estar em casa, em isolamento, neste momento de pandemia, tornou-se sinônimo de salvar vidas. Incrivelmente, na sociedade do desempenho e do consumo, uma atitude que representa uma negatividade em seu sentido filosófico, ou seja, estar passivo perante a imposição de produção e desempenho no mundo, é responsável pela manutenção de um dos maiores bens do sujeito contemporâneo: a vida. Assim, a manutenção da vida no período de pandemia está em consonância com uma postura de reaparecimento a si mesmo, trazendo sentidos subjetivos potentes nas situações em que o Branco proposto por Le Breton (2018) se afigura para, desse modo, desenhar cores representativas da singularidade dos sujeitos que resistem à imposição contemporânea para o desempenho, consumo e mortificação.

O isolamento pode ser uma oportuna possibilidade para a construção de um processo de construção autêntica de uma identidade e reconhecimento dos limites e potencialidades pessoais de cada sujeito. Considerações finais É incontestável o efeito da pandemia na experiência do sujeito contemporâneo. Esses tempos estão cooperando com transformações das já instáveis posições da humanidade na contemporaneidade. Ainda há muito a acontecer e a História registrará como a pandemia influenciou as estruturas da sociedade pós-moderna. Sobre o que estamos presenciando, podemos concluir que o isolamento social proveniente da pandemia praticamente coagiu os sujeitos a se isolarem e estarem efetivamente diante de si mesmos, ou pelo menos facilitou um encontro com eles próprios. Porém, não se sabe com precisão a efetividade e qualidade desse encontro, já que a solidão proveniente do isolamento é usufruída de modos distintos, a depender da intensidade da apropriação da própria experiência por parte das pessoas. Compreendemos a importância da solidão enquanto uma ponte que une os sujeitos a si mesmos e aos seus afetos, mas também não negligenciamos os aspectos negativos que a experiência solitária pode provocar. Portanto, concluímos que a solidão deve ser vivida por meio da solitude,  de um compromisso pessoal com a própria companhia para que sejam exploradas as autenticidades, as potencialidades e os limites de cada um. O estar só pode ser angustiante, triste, uma experiência de dor. Porém, essas experiências dolorosas não devem ser negligenciadas. Pelo contrário: devem ser acolhidas, pois não é só de espetáculos e estímulos positivos que o viver é constituído. Saber do aprendizado e da dor que a solidão pode proporcionar também é abrir caminho para o crescimento a que o sofrer pode dar ensejo. Porém, por mais que reconheçamos a importância da solidão, não desvalidamos a companhia, a ajuda do outro, as fronteiras pessoais, pois é a partir do outro e da diferença, da alteridade, que o Eu se constitui e se consolida como único. A pandemia deixou as pessoas sozinhas, acompanhadas pela própria voz e corpo. Todavia, agora cabe a cada um, no seu próprio movimento, saber desacelerar, aprender a parar e olhar para si, procurar dentro de si os caminhos para uma vida mais digna e apropriada.

Entrevista Nota 10 - No Brasil, os transtornos mentais são a terceira principal causa de afastamentos do trabalho. Na pandemia esse índice disparou. Que espaço o trabalho passou a ocupar diante da nova realidade?

Cynthia Melo - O trabalho e o home-office são alguns dos fatores adoecedores no contexto de pandemia, tanto pelo acúmulo de funções e sobrecarga de trabalho, como pela falta de limites espacial e temporal entre o lazer/descanso e o trabalho. A “invasão” das rotinas de estudo e trabalho no ambiente domiciliar, que antes era lugar privativo da família e de descanso, convocam um cuidado redobrado e adaptação do espaço doméstico, sendo protetivo o cuidado, e até “policiamento” com o respeito a função de cada ambiente da casa e horários.

Entrevista Nota 10 - Qual a importância de falarmos, então, sobre a promoção da saúde mental?

Cynthia Melo - A promoção de saúde instrumentaliza a comunidade a agir sobre os seus determinantes de adoecimento e saúde; que especialmente no contexto de pandemia devem ser vistos em sua visão ampla e multifatorial, incluindo fatores sociais, econômicos, culturais, psicológicos e comportamentais.

Entrevista Nota 10 - E o ócio? Qual o seu papel nisso?

Clerton Martins - Na sociedade apressada e produtivista o ócio faz falta, apesar de, ao mesmo tempo, esperarmos o momento em que possamos reunir as condições para desfrutá-lo e prestigiá-lo como constituinte da vida, qualificá-lo como oportunidade de construção e aprimoramento humano e valorizá-lo em contextos educativos e de trabalho que, em potência, levar-nos-iam a melhor conviver com a complexidade das temporalidades no mundo hipermoderno. O ócio, na verdade, convoca ressignificações, troca, vivacidade, reelaboração da vida, demonstrando que “é essencial parar e recriar toda uma rede de valores mercantilizada, em nome de tempos mais humanos, pautados pelos encontros, vínculos e compartilhamento de experiências” (Martins, 2020, §7º). Com base no que conseguimos elaborar, entendemos que a maior ou a menor variação do tempo na vida das pessoas organiza-se e estrutura-se de acordo com padrões assimilados sobre como se deve dispor o tempo para as diversas atividades, além de como o sujeito consegue apreender e valorizar o sentido do tempo cotidiano para si. Nesse sentido, as diferentes formas de sentir, pensar, agir e estabelecer o tempo e seus possíveis âmbitos acontecem a partir das crenças e valores culturais, que se refletem na ação do sujeito. E, assim, cada tempo vai convocando novos contornos (Martins, 2013). Tal convocação nos lança a pensar sobre nosso contexto educacional, em que nos deparamos com uma educação que tem sonegado o direito às informações sobre uma apropriação do ócio em sua vertente positiva. E nessa educação percebemos a prevalência das hegemonias das elites escravagistas e industriais, o que afastou sua vertente positiva, relacionada à recriação da vida e às possibilidades criativas. [...] Não há orientação para o uso adequado do ócio, um fator de vital importância para a edificação do indivíduo equilibrado. Além disso, a escola, em concepção moderna, perdeu o sentido da formação ética, a partir da qual se elaboram cidadãos, um homem-obra-de-arte, e passou a pautar-se na demarcação orientada pelo paradigma do pensamento industrial, reiterando que a atividade social dominante e determinante da configuração social e do homem é o trabalho (Brasileiro, 2015; Salis, 2004, 2014). E o que acontece com os que não se enquadram no padrão? Exclusão, depressão, marginalidade. É o que observamos.

Na pandemia, o contexto foi de vidas conectadas 24 horas, via tecnologia a serviço da rede de produtividade. Rotinas turbinadas pelo excesso de atividades (Lins, Costa, Moraes, Barbosa Junior & Martins, 2020). Horas que mais parecem evaporar. E ficou claro que a promessa do passado nunca foi cumprida, a promessa de que, com as tecnologias, iríamos ganhar enormes quantidades de tempo em quase todos os campos da vida social. Logo se estabeleceu a certeza de que há um paradoxo incontornável da sociedade contemporânea com relação ao tempo que elaboramos. O trabalho realizado via tecnologia digital, esse, que invadiu as casas e se tornou algo com o sentido de lar, em home office, não realizou a promessa da criatividade no tempo, que seria, ou presumidamente foi pensado, como nosso; muito menos o trabalho ficou mais divertido; e ainda tirou a diversão da casa. Na verdade, nada passou a ser nosso, a não ser a cobrança por resultados e a crença de que “já que estamos em casa”, devemos produzir ainda mais – foi o que observei. Antes do estado de isolamento social, estávamos todos com o modelo de espaço/tempo voltado para o trabalho, para a diversão, para o lar. E tudo dividido em tempos e espaços apreendidos e internalizados enquanto um “eterno e confortável normal”. A gente até acreditava (mesmo) que em meio às tais automatizações, a vida era feliz. Afinal, as idas ao “shopping”, “à escola”, “ao esporte”, “ao bar”, “à praia”, “o passeio com o cão”, sempre deixaram um alento no corre-corre da normalidade, já dominada pelo rotineiro e seus limites conduzidos ao status de “normal”. No contexto pandêmico do isolamento, presos ao virtual, mas desconectados das redes de sentido, não foi à toa que os indivíduos de um tempo sem tempo tenderam ao adoecimento, síndrome do pânico, síndrome de burnout, depressão e TDAH. Essas foram algumas das doenças que disseram sobre o não acesso a nós mesmos. E nesse sentido, confusos e com uma necessidade contínua de comunicação com outros para provar a nós mesmos que não estamos sozinhos, foi nas redes sociais, via blog, e-mail, Facebook, celular, que elaboramos a ilusão de que somos acompanhados, sem percebermos o valor e a necessidade da verdadeira companhia – afirmamos isso com base em Han (2019a, 2019b). Observamos que desse lugar é preciso criar o tempo para a desconexão sem que isso possa convocar o tédio ou a falta de sentido, que seria a ociosidade, observada num “nada fazer” vazio.

Entrevista Nota 10 - Fala-se muito em uma transformação da sociedade no que diz respeito à sensibilidade das pessoas, construção de uma perspectiva melhor do coletivo após atravessarmos esse momento de pandemia. Aprenderemos lições, de fato, com esse momento?

Cynthia Melo - Sim, além do caos, caracterizado pela dor, perdas e traumas, também surgem expressões de crescimento. Tivemos a oportunidade de parar, refletir, revisar prioridades, nos dedicar ao que importa, ressignificar a vida, nos voltar para o cuidado consigo e com o outro. Fomos convocados a criar estratégias de contato, que em alguns momentos se tornaram ainda mais sólidos, e pudemos olhar para a coletividade.

Clerton Martins - Claro que, sim! A pandemia e o seu consequente isolamento nos colocaram diante do desafio de que devemos entender o que é prioritário no existir. E isso envolve que tempo priorizar, o que consumir, com quem é vital conviver e como, quais são nossas prioridades enquanto estamos vivos, e o que significa verdadeiramente convocar na vida enquanto esta vida for. Afinal, o que você faz no seu tempo livre? Já aprendemos o que é o ócio? Lazer é apenas diversão? Num mundo de dentro de quem vive uma experiência, um pouco de presença pode transformar conceitos, estou bem tendencioso a acreditar nisso. Bem, entre tantas descobertas, acreditamos, portanto, que se sentir seguro ao respirar em um tempo de vida no qual se admira alguém, ou uma árvore, ou um cão, ou uma obra, ter tempo para sorver esse deleite, isto ainda é, foi e será um lugar privilegiado. Parece que foi necessário um isolamento para entender o quanto o ócio é real e necessário para termos cuidado com a vida, que, sim, essa é mais!