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Ter, 14 Setembro 2021 10:48

Entrevista Nota 10: Karla Martins e as contribuições da Psicologia Ambiental

Professora e pesquisadora do Programa de Pós-graduação em Psicologia da Unifor reflete sobre as inter-relações humanas com o meio ambiente 


Professora Karla Patrícia Martins, coordenadora do Laboratório de Estudo das Relações Humano-Ambientais (LERHA) (Foto: Arquivo pessoal)
Professora Karla Patrícia Martins, coordenadora do Laboratório de Estudo das Relações Humano-Ambientais (LERHA) (Foto: Arquivo pessoal)

Construídos ou naturais, os lugares podem dizer muito sobre nós mesmos. A Psicologia Ambiental é a ciência que investiga essas relações subjetivas, área de estudo da psicóloga Karla Patrícia Martins, professora e pesquisadora do Programa de Pós-graduação em Psicologia da Universidade de Fortaleza, instituição da Fundação Edson Queiroz

Mestra em Psicologia, doutora em Educação e pós-doutora em Psicologia, atualmente ela coordena o Laboratório de Estudo das Relações Humano-Ambientais (LERHA), que desenvolve pesquisas com relevante contribuição para a solução de problemáticas presentes na sociedade. 

Com exclusividade ao Entrevista Nota 10, Karla Martins compartilha os passos de sua trajetória na área da Psicologia Ambiental, destaca os impactos da pandemia em nossa relação com o meio ambiente e fala ainda sobre a importância de pensarmos a sustentabilidade. 

Dos dias 7 a 12 de setembro de 2021, a professora participou do Congresso Internacional Ambiente e Sustentabilidade (CIAS) como integrante da comissão organizadora. O evento teve como temática central o "Saneamento das Cidades e Sistemas Sustentáveis: Inteligência Coletiva em Crises Sanitárias".

A seguir, confira a entrevista na íntegra: 

Entrevista Nota 10 - Você é mestra em Psicologia, Doutora em Educação e pós-doutora também. Como surgiu o interesse pela área da Psicologia Ambiental? 

Karla Martins - Descobri a PA por acaso, quando ainda estava na metade da graduação em Psicologia. Eu era bolsista de IC em um projeto internacional chamado WAVES (parceria entre Brasil e Alemanha) e pesquisava a relação entre desnutrição e desenvolvimento infantil no semiárido, mais especificamente no sertão dos Inhamuns. Então, comecei a viajar com muita frequência para essa região e a passar dias das minhas férias visitando as comunidades rurais para coleta de dados. Nesse período, a relação entre as pessoas e as características específicas do lugar começaram a chamar a minha atenção. Assim que encerrou o meu período de 2 anos como bolsista do Waves, minha orientadora da época, a professora Irles Mayorga, me indicou para trabalhar em outro projeto internacional. Desta vez uma parceria direta da UFC com a Universidade do Arizona. O projeto era coordenado pelo professor Timothy Finan, do departamento de Antropologia da Universidade do Arizona.  

Nesse período aprendi muito com ele sobre pesquisa qualitativa em comunidades. E minha inquietação sobre as especificidades da relação com o ambiente aumentou. Então, comecei a procurar na internet textos que relacionassem psicologia com essa relação. Assim descobri que existia esse campo da Psicologia chamado “Psicologia Ambiental” e que existia uma rede de pesquisadores pelo mundo que estudavam as questões que tanto me inquietavam. Lembro da felicidade que senti! Parecia que eu tinha encontrado minha tribo, apesar de eles nem saberem que eu existia. Hoje tenho a alegria de fazer parte do grupo de pesquisadores de Psicologia Ambiental do Brasil e tenho minhas principais referências bibliográficas brasileiras como amigos e parceiros de trabalho. A professora Sylvia Cavalcante, professora aposentada da Unifor e fundadora do Lerha, laboratório que coordeno hoje, é uma delas. Anos depois de ter trabalhado no projeto Arizona, eu reencontrei o professor Timothy Finan dando uma palestra na Unifor. Ficamos muito felizes com o reencontro e voltamos a trabalhar juntos, mas agora eu também era professora e orientava pesquisas sobre a inter-relação pessoa-ambiente. Desde então, o professor Tim é nosso parceiro no Lerha. Fazemos pesquisas juntos, ele participa de nossas bancas de mestrado e doutorado de meus orientandos e também já veio à convite do PPGP dar aula para nossos estudantes do mestrado e doutorado em Psicologia da Unifor.

Entrevista Nota 10 - Falando sobre o Laboratório de Estudos das Relações Humano-Ambientais (LERHA), o qual você coordena, qual o intuito do laboratório e quais pesquisas têm sido desenvolvidas? Poderia destacar as mais recentes? 

Karla Martins - No LERHA realizamos atividade de pesquisa, ensino e extensão tendo como principal referencial teórico a Psicologia Ambiental. Nossas ações focam a inter-relação pessoa-ambiente, tanto em ambientes naturais quanto em ambientes construídos. Temos pesquisas em nível de Iniciação científica, mestrado, doutorado e pós-doutorado. Atualmente estamos com 14 pesquisas em desenvolvimento: 3 projetos com bolsas de iniciação científica, 8 pesquisas de mestrado, 3 pesquisas de doutorado, que se distribuem em 4 grandes projetos: Estudos sobre a inter-relação entre pessoas com transtorno do espectro autista (TEA) e ambiente construído; Impactos da pandemia sobre a relação pessoa-ambiente; Psicologia Ambiental e sustentabilidade e Psicologia Ambiental e intervenções urbanas. 

Entrevista Nota 10 - Ao longo da sua trajetória como pesquisadora, o semiárido cearense tem sido presente em seus trabalhos. Poderia nos contar um pouco sobre sua experiência com esse tema? 

Karla Martins - Depois da experiência de pesquisa nos projetos WAVES e Arizona, fiz minha pesquisa para a escrita da monografia de conclusão de curso também no semiárido, verificando a relação afetiva de adolescentes de uma uma comunidade rural de Tauá com seu entorno.  Já no Mestrado em Psicologia continuei no sertão e estudei a migração de jovens. Na verdade a pesquisa foi feita com jovens que estavam no último ano do ensino médio, então, ou o município lhe oferecia condições de trabalho ou estudo ou eles podiam buscar a emigração como forma de ir em busca de seus sonhos e melhores condições de vida. A dissertação foi intitulada como: “Ficar ou partir? Afetividade e migração de jovens do sertão semiárido cearense”. 

No Doutorado em Educação trabalhei com a perspectiva da educação popular e educação contextualizada para o semi-árido. Através das histórias de vida de professores que se reconheciam como educadores ambientais, independente da disciplina que ministravam. Na época, desenvolvi um método de pesquisa que intitulei de “Círculo ecobiográfico”. Mas é importante destacar que atualmente não realizo pesquisas e nem intervenções no semiárido. Os trabalhos do LEHRA se concentram mais em ambientes urbanos por enquanto, apesar de que ainda sonho em coordenar um projeto voltado para o Sertão.  

Entrevista Nota 10 - Já que falamos do semiárido, gostaria de também “puxar” um pouco para as metrópoles, um contraponto. Com a pandemia de Covid-19 e o confinamento ao qual necessitamos aderir, os grandes centros urbanos foram atravessados por uma nova realidade: mais silêncio, menos pessoas e carros circulando, estabelecimentos comerciais fechados… Como tudo isso afetou/têm afetado nossa relação com a cidade? 

Karla Martins - Durante a pandemia, devido às medidas sanitárias para controle da proliferação da Covid-19 nossa relação com a cidade foi impactada de forma intensa e abrupta. Logo no início, fomos impedidos de circular livremente pelos espaços coletivos. Estes passaram a ser vistos como lugar de risco. O vírus podia estar em todos os lugares e nós não tínhamos o mesmo controle sobre as condições de higiene que tínhamos nas nossas casas, local de segurança. Além das restrições impostas pelas medidas sanitárias para o controle da pandemia, havia o medo coletivo, disseminado também pela avalanche de informações que nos assustavam e sobretudo pela insegurança sobre o que era verdade ou exagero, certo ou errado, devido às contradições entre o discurso do governo brasileiro e o da ciência, mais aceito em outros países. Com a chegada das vacinas as pessoas começaram a relaxar a ponto de exagerar e colocarem a si mesmas e aos outros em risco, pois o risco ainda existe.

Sobre a relação com a cidade, esta precisa ser repensada para que possamos oferecer lugares de encontro, de lazer, ofertar mais espaços abertos e verdes, melhorar nossos parques urbanos, que são tão importantes para a saúde da cidade. Os espaços públicos, além de serem, por excelência, lugar de encontros, de ação ético-política na cidade, são também potenciais lugares de ações de promoção da saúde física e mental. É importante que o poder público prepare esses espaços para acolher a população sedenta de lazer e de ambientes de encontros. 

Outro ponto importante que precisa ser pensado é a mobilidade urbana. Sabemos dos riscos da superlotação dos transportes públicos. O que já era preocupante tornou-se insustentável devido ser uma forte via para proliferação do vírus. Estimular e oferecer condições para a mobilidade ativa é imprescindível, trazendo benefícios para a saúde da população como um todo. Fortaleza é uma cidade plana, praiana, poderia ser menos quente se houvessem mais árvores e, assim, seria mais convidativa para o andar a pé, sobretudo, se associado a este fator tivéssemos também calçadas adequadas. A iniciativa de estimular o uso da bicicleta e de outros modais não motorizados  também é importante e o fato de termos começado a investir na mobilidade ativa através da disponibilização de ciclovias e ciclofaixas para a população foi importante, mas é necessário que chegue a todos os bairros, principalmente na periferia onde a bicicleta é um meio de transporte importante para muitos. 

Entrevista Nota 10 - Professora, e como a Psicologia Ambiental tem ajudado a pensar também a sustentabilidade em meio à crise sanitária global?

Karla Martins - Uma coisa que ficou muito clara é a nossa interdependência. Estamos todos conectados, o que acontece em outra parte do mundo tem influência sobre nossas vidas, seja com a proliferação de doenças, desenvolvimento de tratamentos de cura, com também o aumento no custo de vida ou na qualidade da água ou do ar que respiramos. A pandemia funcionou como uma grande lente e jogou luz sobre diversos problemas sociais que já existiam. Escancarou nossas fragilidades e chama à responsabilidade em relação a esses problemas e à crise ambiental que se agrava a cada ano. 

Pudemos observar claramente a diminuição da poluição em diversos ambientes. Rios, lagos, parques... ficaram mais limpos, menor poluição do ar...Animais apareceram circulando com maior liberdade...O que fica de lição? A certeza de que somos nocivos aos ambientes naturais. Bastou afastar o ser humano por um tempo e tudo parecia mais limpo e bonito! Acontece que esse tipo de poluição que “sumiu” com o distanciamento da espécie humana é o tipo que volta bem rápido, dependendo da forma como vamos voltar a nos relacionarmos com esses espaços.  

Entrevista Nota 10 - Destacando um âmbito mais pessoal, um novo significado dado à nossa relação com a casa também foi algo presente no estopim da pandemia. Tivemos de reinventar esse espaço, levando o trabalho e o lazer para dentro dele. Na sua análise, quais são os impactos dessa experiência?

Karla Martins - O surgimento da pandemia impactou em inúmeros aspectos os ambientes de vivência cotidiana. As medidas de controle não farmacológicas passam a ser vistas como indispensáveis à contenção da disseminação viral. Essas estratégias, contudo, geraram impactos nos inúmeros aspectos que compõem o ambiente cotidiano das pessoas: O distanciamento de amigos e da família, a diminuição da liberdade de ir e vir, a obrigatoriedade do uso de máscaras, o monitoramento pela vizinhança, a esterilização dos ambientes, entre outros fatores, tornaram-se comuns e desencadeadores de estresse e potencializadores de adoecimento psíquico.

O ambiente doméstico foi fortemente impactado pelas mudanças impostas pelas medidas de contenção da pandemia. A regra do “fica em casa”, realmente necessária, desencadeou muitas mudanças na estrutura desse ambiente. Desde mudanças físicas através dos novos arranjos espaciais para adaptação do lugar para cumprir novas funções que lhe foram impostas, até mudanças mais subjetivas, como a relação dos moradores com alguns espaços da casa, novas demarcações territoriais, alterações na privacidade...

O ambiente doméstico tradicionalmente estruturou-se como núcleo primário da sociedade e sempre cumpriu para o ser humano a função primordial de um “centro de abrigo”; de repouso, de privacidade, isto é, lugar que nos pertence, que contempla nossa subjetividade e que nos traz sensações de conforto, proteção, acolhimento e sobre o qual temos maior controle do que em relação aos ambiente considerados secundários como nosso local de trabalho, sobre o qual temos controle parcial ou ambientes terciários, caracterizado como, por exemplo, os espaços públicos, sobre os quais não temos controle. Com o fato de não podermos sair de casa, este espaço, antes primário, de total controle, de privacidade, ganha contornos de local de trabalho, de estudo, de lazer...havendo, aí, uma sobrecarga sobre esse ambiente, tornando-o por muitas vezes, ambiente estressor. 

Ainda em 2020, fizemos uma pesquisa para verificar o estresse ambiental em ambiente domiciliar dos brasileiros. Essa pesquisa foi resultado de uma parceria entre três laboratórios de pesquisa vinculados ao PPGP-Unifor. O LERHA, coordenado por mim, o Lepp-saúde, coordenado pela professora Cynthia Melo e o Otium, coordenado pelo professor Clerton Martins

A pesquisa geral teve coordenação da professora Cynthia Melo e financiamento da DPDI-Unifor. Tinha como objetivos compreender os impactos da pandemia na vida dos brasileiros sob diversos aspectos. A relação com a casa foi apenas um desses aspectos.

Nessa pesquisa questionamos o impacto da política de distanciamento social, necessária para o controle da disseminação da Covid-19, sobre a saúde mental e no nível de Estresse Ambiental em ambiente domiciliar, provocado pelas modificações na maneira como as pessoas se relacionam com seus espaços domésticos. A pesquisa foi feita com 2 mil brasileiros de todas as regiões do país, através de questionário online. Tinha como principal objetivo “analisar e discutir sobre quais são os fatores geradores de Estresse Ambiental residencial de brasileiros durante o distanciamento social estabelecido como medida de controle da pandemia da Covid-19”. 

Os resultados apontaram que 81,9% dos entrevistados já apresentavam estresse ambiental, relacionado à casa, em maio de 2020, quando os dados foram coletados.