null O espaço devastado do eu

Qui, 18 Fevereiro 2021 15:09

O espaço devastado do eu

Especialistas abordam o papel da privacidade em meio à hiperconectividade da vida contemporânea 


Atualmente é possível coletar e tratar dados pessoais amplamente (Foto: Getty Images)
Atualmente é possível coletar e tratar dados pessoais amplamente (Foto: Getty Images)

Se privacidade já era artigo de luxo diante da incontornável adesão contemporânea à virtualidade, cujo maior cacoete vem sendo o uso das diversas ferramentas online para a exposição pública da intimidade, que contornos e nuances ainda delineiam a vida privada, sobretudo após o isolamento social imposto pela Covid-19? Para a arquiteta Mariana Ribeiro de Castro, que também é mestranda em Psicologia na Universidade de Fortaleza, instituição vinculada à Fundação Edson Queiroz, o espaço íntimo como abrigo protetor ou mesmo refúgio do mundo lá fora vem sendo reconfigurado diante de sua crescente violação.

“Com a pandemia e suas regras de biossegurança, aplicadas a fim de evitar aglomerações humanas, observamos que o conceito de lar como lócus de privacidade, resguardo e decoro foi profundamente abalado após sermos obrigados a tornar a casa não só lugar de recolhimento e descanso, mas também de trabalho, estudo e lazer ao mesmo tempo. A casa virou mundo. E foi essa transferência abrupta de nossas atividades externas para o ambiente doméstico que fez saltar um claro sentimento de invasão de privacidade nas pessoas, principalmente junto àquelas que passaram a conviver por mais horas em ambientes pequenos antes praticamente só usados como dormitórios. A falta de um espaço próprio trouxe um paradoxo, portanto, já que passamos a nos sentir 'aglomerados' e 'presos' dentro de nossa própria casa”, reflete Mariana. 

Como integrante do Laboratório de Estudos das Relações Humano-Ambientais (LERHA) do Programa de Pós-graduação em Psicologia da Unifor, a arquiteta e pesquisadora também busca na Psicologia Ambiental as evidências científicas que comprovam justamente o impacto do ambiente nas emoções e relações humanas. “Os níveis crescentes de ansiedade e estresse atrelados à hiperconvivência doméstica durante a pandemia dizem da importância dos ambientes restauradores, lugares capazes de nos aliviar o peso da rotina e nos conectar com o nosso íntimo, trazendo bem-estar. Com a quebra do nosso direito de ir vir e a impossibilidade da diversificação dos nichos de convivência, o 'espaço pessoal', aquele território subjetivo que não poderia ser invadido, também é violado. E é essa perda de privacidade que, entre outros fatores, pode gerar desde conflitos familiares até mesmo aumento de casos de violência doméstica, como demonstram pesquisas científicas recentemente desenvolvidas com participação da própria Unifor”, destaca Mariana.  

Para ela, não só a psicologia, mas também a arquitetura precisam atentar assim para a necessidade de reconfiguração dos espaços privados. É que certos ditames comportamentais inaugurados com a pandemia lhe parecem ter vindo para ficar. “Se houve algum dado positivo atrelado ao isolamento social é aquele que demonstra que as pessoas voltaram a olhar com mais atenção e carinho para as próprias casas, seja porque foram obrigadas a adaptar certos ambientes para novas demandas que antes não tinham, seja porque a permanência por maior tempo em casa gerou mesmo essa reapropriação ou ressignificação do morar. Se antes a maioria mal enxergava ou usufruía de sua própria casa, já que a maior parte do dia se passava na rua ou em ambientes externos, agora devemos procurar atender a um novo desejo: o de fazer caber o mundo em casa sem que ninguém se sinta preso ou oprimido”, vislumbra.

O público e o privado

Veio com o século XIX a valorização do espaço íntimo como aquele destinado a cada um. Intimidade, portanto, é uma invenção burguesa marcada por interesses políticos e econômicos próprios do capitalismo industrial que, surfando na onda do desejo moderno de se resguardar de olhares intrusos, tratou de tornar rentável a cisão entre o público e o privado, com a gradativa expansão deste último em relação ao primeiro. Assim, ambientes privados e a própria noção de privacidade ganharam tônus ao longo dos tempos, rompendo o milênio como direitos adquiridos, mas sempre questionáveis. É o que lembra o arquiteto e professor do curso de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de Fortaleza, Daniel Arruda.   

“Normas bem diferentes regem os espaços públicos e os espaços privados. E o próprio entendimento sobre o que é público ou privado muda de acordo com a cultura de cada sociedade. Em Fortaleza me parece notório: há aqui um tesão por gradis e espaços semi-públicos. Veja por exemplo o Centro Dragão do Mar, uma instituição pública hoje cercada de gradis... Há ali uma clara mensagem de cerceamento justificada talvez como medida de segurança diante da violência urbana. Mas isso impele que o público venha a ser tratado como privativo. E assim fica comprometido o necessário exercício de civilidade que deve se dar notadamente em espaços públicos, onde o uso ou ocupação a que me permito esbarra no limite e igual direito do outro”, assinala Daniel.  

Para ele, soa problemática a ideia ainda vigente de espaço privado que desestimula ou até impede do ponto de vista visual a comunicação e a troca com o “outro”. “Pensemos nos condomínios fechados. Porque a cidade é violenta e degradada eu crio uma ilha onde tudo é perfeito e não há pobreza, cerceio grandes áreas dentro de perímetros urbanos, ergo muros que impedem a transição de um lado para o outro, ou seja, elevo meu sentido de poder privado para além da minha necessidade real. Crio, portanto, uma cidade dentro da outra, onde impeço o livre trânsito de fora e quem está dentro fica ilhado da realidade. Afinal, até onde vai meu direito à privacidade, de me isolar em meu mundo prejudicando o mundo dos outros, já que aquele nível de privacidade pretendido por mim cria um entrave na cidade, impactando negativamente no funcionamento dela e até na formação do indivíduo quanto ao direito de ir e vir?”, questiona.

E se privacidade é direito, Daniel sonha com o dia em que a arquitetura também será. “Grande parte da população não tem acesso a um lote, a uma casa e muito menos a um projeto arquitetônico. Lembremos, portanto, que o direito à privacidade passa por poder aquisitivo. E que arquitetura ainda é um recurso elitista. O Estado teria que incentivar esse acesso, ser esse prestador de serviços para garantir salubridade, moradias mais funcionais e dignas. Isso não é um luxo. É uma necessidade básica e até psicológica, a meu ver, porque está ligada ao bem-estar. Mas, historicamente, diante da disputa arraigada ao direito à propriedade, isso também é negado”, lamenta o professor.

Na esteira da pandemia da Covid-19, o arquiteto também revê a própria matéria: “talvez seja cedo para afirmar, mas em nome da garantia da privacidade talvez o espaço do escritório e das varandas passem a ser mais valorizados nos projetos arquitetônicos, obedecendo às novas demandas de clientes que já estão buscando adaptar a casa para múltiplas funções próprias de uma vida remota. E aí vamos exaltar e relembrar as clássicas lições da arquitetura, como aquela que recomenda que não se trabalhe a uma distância maior do que dez metros de uma janela. Isso porque é salutar você ver o dia passar, ter a quebra da continuidade de trabalho, o alívio da tensão da alta produtividade em um espaço isolado”, sublinha Daniel. 

A intimidade como espetáculo

E quando somos nós mesmos os “algozes” de nossa privacidade, levando para as redes sociais, muitas vezes sem qualquer filtro ou seleção, dados biográficos, confissões íntimas e hábitos cotidianos? Com um simples clique, expor-se publicamente na aldeia global hiperconectada parece ter se tornado não só regra comportamental, aceita e festejada acriticamente, como também um desejo incontrolável. É o que percebe a professora dos cursos de Jornalismo e Publicidade da Universidade de Fortaleza, Mariana Fontenele, que debate constantemente em sala de aula a complexidade de um conjunto inovador de práticas comunicativas hoje também a serviço de nossa histórica disposição confessada, confidente, exibicionista e voyeur.  

“Penso que o significado e o valor da privacidade podem variar, por exemplo, entre diferentes culturas e contextos sociais. No Brasil, conceitos como intimidade, afetividade, relacionamentos, podem ter uma compreensão bem diferente do que ocorre, por exemplo, na França. No entanto, particularmente, acredito que existem esferas da vida que devem ser resguardadas. É um valor humano, que só diz respeito ao próprio indivíduo e a quem ele escolhe e decide dividi-lo. Por isso, penso que entregar em completude a sua privacidade pode gerar mais prejuízos que vantagens, sobretudo quando enxergamos na era da superexposição eficazes dispositivos de poder capazes de controlar e mercantilizar nossa atenção”, aponta a professora, lembrando o recado explícito de filmes como 'O Dilema das Redes” e de séries na linha de “Privacidade Hackeada”.

Para Mariana, o excesso de exposição da intimidade na internet também é complexo na medida em que afeta não só a nossa comunicabilidade como a própria constituição do “eu” e sua peculiar inscrição na fronteira entre o extremamente privado e o absolutamente público. “Há de se considerar também os impactos e as consequências de ordem psicológica,  sociológica e antropológica diante desses novos modos de interação híbridas, entre o presencial e o virtual. Autores como Byung-Chul Han, Manuel Castells e Raquel Recuero estão fazendo um importante cruzamento epistemológico para compreender este cenário, onde a emergência de um novo conjunto tecnológico implica uma reprogramação sensorial e cognitiva de corpos e mentes, além de transformações socioculturais profundas. Interagimos mais, é fato. Mas interagimos melhor? Não acho que seja possível afirmar isso”, reflete. 

Com o filósofo Byung-Chul Han, a professora põe em xeque, portanto, a chamada “sociedade da transparência”: “vivemos na era da superexposição, dos excessos, da falta de mistério, o que também deixa pouco espaço para imaginação e para a criação intersubjetiva. Nas redes sociais, o nosso corpo, nossa existência, ganha um valor de exposição, como uma mercadoria. Cabe então perguntar: nos tornamos objetos nas redes sociais? Na obra 'No enxame: perspectivas para o digital', Han tece uma análise do que ganhamos e o que perdemos com a era digital. E as reflexões do autor nos permite imaginar que temos muito mais a perder do que a ganhar, uma vez que tendemos a nos deixar escravizar por estas redes, abrindo mão do nosso protagonismo enquanto seres humanos na construção relacional de nós mesmos”.

Direito à privacidade

Uso constante de celulares. Participação em redes sociais. Adoção de aplicativos para consumo diário e até deslocamentos pela cidade. Existe um grande olho virtual a nos acompanhar ao longo de 24 horas, aonde quer que estejamos, para, em tese, suprir toda e qualquer necessidade pessoal. São tempos não só de uma permitida invasão da privacidade, como também de uma já chamada “evasão da privacidade”. E se é difícil guardar segredos em meio a uma revolução digital sem precedentes, como proteger dados e informações cuja propagação descontrolada pode esbarrar em dilemas éticos e até descumprimento de direitos adquiridos?  

Responsável pela proteção de dados da Universidade de Fortaleza, o também professor do curso de Direito, Davi Carvalho, admite que a privacidade, de fato, é um direito vulnerado, em função, principalmente, da migração da vida social para ambientes digitais, onde cada manifestação de um indivíduo é passível de rastreio e análise, permitindo, assim, a formação de perfis (sociais, políticos, de consumo, psicológicos, de saúde, profissionais) extremamente úteis e valiosos para o mercado. 

Ele lembra: “desde há muito e em todas as partes do mundo se discutem os limites éticos e jurídicos da atuação mercantil em relação à privacidade. Países da Europa se ocupam do tema desde a década de 1970. Nos Estados Unidos também há longo registro de estudos acadêmicos e controvérsias judiciais a respeito do RIGHT OF PRIVACY. No Brasil, fundamentos para a proteção da privacidade podem ser evidenciados desde a Constituição Federal de 1988, passando pelo Código de Proteção e Defesa do Consumidor (L8078/90); Código Civil (L10406/02); pela Lei do Cadastro Positivo L12414/11; Lei de Acesso à informação (L12527/11), Marco Civil da Internet (L12965/14) e, mais recentemente, com a Lei Geral de Proteção de Dados – LGPD (L13709/2018), em vigor”.

Segundo o professor, a LGPD, no entanto, não vem para dificultar ou mesmo inviabilizar o tratamento de dados pessoais em nome de um direito absoluto à privacidade. “Não é a LGPD uma norma essencialmente protetiva de direitos e garantias assegurados. Na verdade, a LGPD busca conciliar questões como o respeito à privacidade e à autodeterminação informativa com o desenvolvimento econômico e tecnológico, a inovação, a livre iniciativa, a livre concorrência, sem descuidar da proteção do consumidor”, enfatiza, admitindo que o fato de a privacidade ser um bem jurídico tutelado pelas mais importantes normas internacionais evidencia a um só tempo tanto a sua relevância quanto a sua vulnerabilidade. 

E que se encare os fatos: cientistas da computação, profissionais da segurança da informação e especialistas em tecnologia são céticos em relação à garantia da privacidade. “Há certo consenso em afirmar ser impossível, pelo menos atualmente, garantir integral proteção a dados pessoais e, consequentemente, à privacidade. Apesar de todos os esforços orientados à tutela da privacidade, sua integral proteção somente será possível por via de abrangente e gradual amadurecimento ético e cultural. Vejamos: o indivíduo mais forte pode fazer sucumbir o mais fraco e nem por isso é legítima a ação orientada para isso. Ou seja, a lei pode estabelecer as punições aplicáveis ao agressor, mas é a ética que estimula o indivíduo a não proceder contra o interesse legítimo do próximo”, defende Davi.

Assim, é que, para ele, a possibilidade de se coletar e tratar dados pessoais amplamente, ainda que de modo responsável, não deve justificar, por si só, a sua prática. “O respeito à privacidade, assim, deve ser encarado igualmente uma decisão ética e o amadurecimento ético e cultural a que me referi deve alcançar igualmente a nós todos, titulares de dados pessoais”, reitera o professor. Mas, afinal, somos vítimas ou corresponsáveis pela vulneração de nossa privacidade? Ambas as alternativas estão corretas? 

Sem respostas fechadas, Davi Carvalho sugere que façamos uma breve reflexão sobre o modo como tratamos nossos dados pessoais, avaliando, por exemplo, o nível de exposição a que voluntariamente sujeitamos nossas vidas privadas, especialmente em redes sociais; o cuidado com o compartilhamento de dados; a cautela com a análise prévia dos termos de uso e das políticas de privacidade das plataformas digitais e os softwares que utilizamos; e, ainda, o zelo que temos em relação a procedimentos mínimos de segurança, como não salvar senhas em computadores, não criar senhas de fácil descoberta, não compartilhar logins e senhas, não acessar sites e conteúdos de duvidosa segurança, não repassar conteúdos recebidos em mensagens compartilhadas em massa e não utilizar softwares sem a devida licença, mantendo-os atualizados e protegidos através do uso reiterado de antivírus.