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Seg, 11 Março 2024 14:12

Entrevista Nota 10: Tarcísio Pequeno e a permanente busca pelo conhecimento do mundo

O professor e cientista fala sobre a importância do conhecimento para a humanidade e os desafios do estímulo ao pensamento crítico, além de comentar sobre o videocast que irá apresentar


Tarcísio é professor emérito da UFC, já foi presidente da Funcap por três mandatos e agora estreia o programa “Conhecimento do Mundo”, produzido pela TV Unifor (Foto: Ares Soares)
Tarcísio é professor emérito da UFC, já foi presidente da Funcap por três mandatos e agora estreia o programa “Conhecimento do Mundo”, produzido pela TV Unifor (Foto: Ares Soares)

O conhecimento de décadas de dedicação à ciência e uma curiosidade inata levam Tarcísio Pequeno a se ver como um eterno estudante. Cientista e professor da Universidade de Fortaleza, ele acredita que o conhecimento é essencial para a vida humana, tanto pelos benefícios que traz quanto para conduzir uma vida justa, do ponto de vista pessoal.

Mesmo ciente da falibilidade da ciência, o mestre em Informática e doutor em Teoria da Computação a vê como o melhor caminho possível, afirmando a importância da racionalidade para lidarmos com o mundo em que vivemos. Para ele, no entanto, termos evoluído tanto nas ciências naturais e exatas não é suficiente.

“Acho que essa é a grande crise dos nossos tempos. Nós temos que desenvolver mais sabedoria a par do conhecimento. Para isso, não é preciso ficar ignorante. O que nós temos é que, ao par da ciência, desenvolver também uma sabedoria humanitária. Ao lado da inteligência artificial, temos que dar um reforço enorme na inteligência humana, sobretudo quando vamos tratar de coletividade, porque nossa burrice é vexatória”, declara.

Foi para discutir esse e outros tópicos que Tarcísio, em parceria com a TV Unifor, elaborou a ideia do Conhecimento do Mundo. O novo videocast irá estrear no próximo dia 11 de março e terá novos episódios veiculados semanalmente, toda segunda-feira, tanto no canal de YouTube da TV Unifor quanto no perfil do Spotify UniforCast.

O programa busca oferecer aos espectadores uma visão aprofundada de diversos assuntos envolvendo a filosofia e a ciência, usando como base nomes como Platão, Newton e Sócrates, em um bate-papo sobre conhecimentos gerais.

Tarcísio tem doutorado sanduíche pela Universidade de Waterloo, no Canadá. Já foi docente na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio) e na Universidade Federal do Ceará (UFC), tendo ainda sido professor visitante do Imperial College, na Inglaterra, e da University of New Hampshire, nos EUA.

Foi membro da diretoria da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), da diretoria da Sociedade Brasileira de Computação (SBC), do Comitê Assessor em Ciência da Computação do CNPq e representante da área de Ciência da Computação na CAPES. Esteve à frente da presidência da Fundação Cearense de Apoio à Pesquisa (Funcap) por três mandatos e já foi Secretário de Ciência, Tecnologia e Inovação de Fortaleza. 

Hoje, Tarcísio é professor da Unifor nas áreas de Inteligência Artificial, Lógica e Filosofia. Na Entrevista Nota 10 desta semana, ele fala sobre a importância do conhecimento e da ciência para a humanidade e os desafios para o estímulo ao pensamento crítico, além de comentar sobre o videocast que irá apresentar.

Confira na íntegra a seguir.

Entrevista Nota 10 — Professor, qual a sua relação com a ciência? Como você enxerga o papel do conhecimento na evolução humana? 

Tarcísio Pequeno — A minha relação pessoal com a ciência é muito estreita, porque ela vem desde a infância: meu pai era professor universitário de Física na Escola de Agronomia. Lá em casa, ele tinha muitos livros de física, inclusive em língua estrangeira, e desde criança que eu gosto muito de ciência. Também sempre tive um gosto e um talento para matemática. Portanto, eu diria que a minha relação com a ciência vem quase desde o berço.

Profissionalmente, eu trabalho em computação desde 1968 — isso é até imoral de ser divulgado. O pessoal vai pensar que eu sou sou velho caindo aos pedaços (risos). Na época, nem se ouvia falar em computador. Só havia um no Ceará, que ficava na própria sede da IBM, onde comecei minha vida profissional como programador de computadores e tenho me mantido próximo a essa área desde então. Eu me dediquei à inteligência artificial e, a partir de um certo tempo, à área da lógica. Também passei a me dedicar, já faz algumas poucas décadas, à filosofia da ciência.

Quando discutimos a teoria ética, Platão identifica a virtude como o conhecimento e a falta de virtude, o vício, como a ignorância. Para ele, você só fazia o mal por ignorância. Se você realmente conhecesse todos os os fatores envolvidos na sua ação, você jamais tomaria atitudes nefastas para sociedade e para si mesmo. Você podia ser egoísta como fosse — e tudo bem, todo mundo precisa se autopreservar —, mas o que você não pode ser é ignorante. Isso era como Platão pensava, e eu gosto de pensar assim também.

Acho que o conhecimento é muito importante na vida humana para, primeiro, conduzir uma vida justa, do ponto de vista pessoal. E segundo, pelos benefícios que o conhecimento do mundo permite ao ser humano. Ter mais mais agência e poder sobre o mundo pode trazer muitos benefícios como, por exemplo, a produção de alimentos para alimentar uma população tão grande como a que nós temos hoje na Terra. Embora possa também muito bem ser utilizada para o mal, para matar pessoas, como hoje se está fazendo em alguns lugares do mundo — em particular em Gaza, neste momento. Ali é um conhecimento e uma tecnologia utilizada para o mal.

Entrevista Nota 10 — Inclusive, recentemente foi divulgado o vídeo de um engenheiro da Google, que se manifestou contra o uso da tecnologia para destruição, em um evento com o diretor da empresa em Israel. Você viu?

Tarcísio Pequeno — Eu vi aquele vídeo e duas coisas  me chamaram atenção. Uma é que essa manifestação dele — que é uma manifestação extremamente importante, corajosa e rebelde —, teve mais reprovação do que a aprovação no restante da audiência. Se prestarmos atenção, vemos que o pessoal tentou até vaiar ele para que se calasse. Isso é triste. A segunda é que o CEO da Google, que estava fazendo a apresentação, aproveitou para dizer “Vejam bem, a vantagem de se trabalhar numa empresa democrática é que você pode emitir opiniões contrárias”. 

Eu repostei isso no Twitter [atual X], mas acrescentando o comentário: “Você pode emitir a opinião contrária desde que seja retirado da sala imediatamente após fazê-lo”. Isso quer dizer, tem uma democracia, uma liberdade, mas quando o cara se manifesta contra, vem um segurança o arrasta para fora da sala. Isso não é exatamente muito democrático, né? Democrático seria se ele fosse permitido continuar ali discutindo e se começasse um debate sobre esse mau uso, esse uso perverso da tecnologia.

Entrevista Nota 10 — Mudando um pouco de assunto. Transmitir informações faz parte de uma das atividades mais antigas da humanidade enquanto ser social, seja ao redor da fogueira ou ainda nos livros e instituições formais. Poderia explicar a importância de compartilhar o conhecimento para o funcionamento e bem-estar tanto individual quanto da sociedade?

Tarcísio Pequeno — Primeiro que isso a que você se refere chama-se cultura. O ser humano não é apenas uma engrenagem no organismo biológico, ele é, sobretudo, um organismo cultural. E a forma de se preservar a cultura e ela experimentar pelo menos uma aparência de progresso — compete às gerações transmitir essa cultura da sociedade sob a forma de costumes, hábitos rituais e conhecimento — é transmitir para as gerações que vem em seguida. Esse é o nosso caminho.

Hoje fazemos isso parcialmente em sala de aula, como é na Unifor, e é muito importante ter essas instituições. A Unifor tem um lema que se adere muito bem: “Ensinando e aprendendo”. Eu tenho sido professor toda a minha vida, mas o que de fato sou é estudante, nunca deixei de ser. Se o que eu faço todo dia é a minha profissão, o que eu faço todo dia é estudar, então, sou um eterno estudante. Essa postura é muito importante. Uma instituição de ensino como a Universidade de Fortaleza é um lugar onde nos reunimos para ensinar e aprender, onde as velhas gerações e as gerações mais jovens aprendem mutuamente.

Isso é um ritual extremamente importante. Diria que é a cola harmonizante que une uma sociedade, afinal, ela é unida pelas coisas que todos compartilham sobre a visão de mundo e de conhecimento, mesmo com muitas divergências — que também são necessárias. É preciso haver os dois elementos para haver uma sociedade boa de se viver e justa, esse é o sentido da palavra democracia. As pessoas com visões que diferem em alguns pontos sobre o mundo devem ser capazes de viver pacífica e harmoniosamente, em uma prática de diálogo, ensinamento e aprendizado mútuos entre todos.

Entrevista Nota 10 — No próximo dia 11, a TV Unifor irá lançar o videocast Conhecimento do Mundo, que será apresentado por você. Como surgiu essa ideia? Compartilha conosco qual é a proposta do programa e o que ele irá trazer de interessante para o público.

Tarcísio Pequeno — Embora tenhamos usado esse nome amplo, nos restringimos a refletir em particular sobre um tipo de conhecimento do mundo que é a ciência. O objetivo da ciência é o conhecimento do mundo. Foi derivado dessa segunda frase que nós batizamos o podcast, mas se fosse para dar um nome mais completo — talvez menos fácil de divulgar [risos] — seria “O conhecimento do mundo através da ciência”. É disso que o podcast trata.

Fizemos isso primeiro porque estamos numa instituição de conhecimento. E a universidade, em particular, é uma instituição de conhecimento científico, que cultiva, transmite e produz conhecimento, contribuindo nesse esforço mundial de instituições e pesquisadores cientistas de todo o mundo que avançam com o saber. 

Em segundo lugar, fomos motivados pelo que aconteceu com a ciência durante a pandemia, quando assistimos dois fenômenos. Por um lado, a ciência foi mais levada ao público, sobretudo, a ciência que se faz aqui no Brasil e no Ceará — um exemplo é a Unifor, que tem uma Vice-Reitoria de Pesquisa, da qual eu faço. Pela primeira vez, essa pesquisa que se faz aqui no país chegou a ser noticiada inclusive em horário nobre, como a que se faz na Fiocruz e em diversos institutos científicos, sendo que elas nunca chegavam lá. Sempre chegavam pesquisas espetaculares, mas a nível internacional, sempre de fora. Houve esse movimento na mídia, houve um interesse da população grande na ciência por conta do risco de vida que estávamos todos nós correndo.

Por outro lado, teve o oposto também. No âmbito da pandemia, surgiu um movimento negacionista contra a ciência e contra as vacinas, movimentos terraplanista, um movimento da irracionalidade anticiência. Foi essa a dicotomia, o paradoxo que surgiu na pandemia e que nos motivou a fazer um podcast onde pudéssemos esclarecer melhor o que é a ciência e o que não é ciência também. Inclusive, falar das limitações da ciência. O intuito também é deixar claro que a ciência não é o único método de conhecimento do mundo, é apenas um deles.

A ciência não é caracterizada pela certeza das suas afirmações, muito pelo contrário. As afirmações científicas não são certas, seguras e irrevogáveis, a ciência é revogável. Mas o método da ciência é nos apresentar o melhor, dado toda a análise, conhecimento que se pode ter no atual estado de coisas. Com o tempo, nós vamos avançar mais e algumas coisas serão revogadas, assim como a teoria de Newton foi substituída pela Teoria da Relatividade de Einstein.

Então, a ciência não é a arte de produzir certezas, porque elas não existem. A ciência produz o conhecimento mais plausível disponível, mas ela também é falível. Ficou bem estabelecido que as teorias científicas estão sujeitas a falhas, mas são o melhor que temos dado o conhecimento disponível até então. A ciência nos dá o melhor caminho possível, e é isso que chamamos de racionalidade. Racionalidade não é ir pelo que é certo e seguro, é ir pelo mais plausível. Isso é a racionalidade humana. Porque se esperar para estarmos certos, certos, certos mesmo, nós nunca vamos estar.

Entrevista Nota 10 — Você é cientista, professor e já foi presidente da Funcap. Estando tão mergulhado no universo da ciência e pesquisa, como você enxerga a situação atual do conhecimento coletivo que temos enquanto sociedade? Quais os desafios para o futuro do estímulo ao pensamento?

Tarcísio Pequeno — Acho que, apesar de termos feito tudo, tudo que fizemos (como dizia o Belchior), nós estamos vivendo uma crise muito grande em respeito a várias coisas. Minha posição pessoal, sujeita a todas as críticas e contradições, é que avançamos muito no conhecimento da natureza científica — no mais íntimo da matéria, das partículas, do mais longínquo universo, nas ciências da computação e da inteligência artificial, na medicina, genética etc —, adquirimos muito poder sobre a natureza.

Todavia, esse progresso no conhecimento de natureza científica não foi acompanhado por um correspondente progresso na sabedoria humana, na sabedoria de viver, do ponto de vista mais humano e mais pessoal, na ética. Então, nós ficamos meio “pensos”: muitos sabidos e com muito conhecimento em uma coisa, mas muito carente noutras.

Por exemplo, um problema simples de se resolver, em termos intelectuais, com a quantidade de alimentos que se produz no mundo, é ter uma distribuição tal que ninguém passe mais fome nem necessidade, que todos possam fazer suas três refeições por dia. Nós temos alimento e riqueza suficiente para que todos possam. No entanto, isso não ocorre.

Então, nós temos um grupo extremamente rico, com um dinheiro que eles não conseguem gastar mesmo que comprem um iate por dia até o fim da vida, e temos uma multidão de pessoas passando extrema necessidade e vivendo na miséria. Isso é uma estupidez! Qualquer pessoa que olhe isso de fora pode pensar “Rapaz, esses caras são muito burros!”. Como é que a gente não consegue se organizar minimamente?

Até faço uma analogia de um grupo de cientistas que estudam macacos e observam um comportamento anômalo. Um macaco lá muito forte, o macho “alfa” do grupo chega, arranca todos os cachos de banana disponíveis, faz uma pilha com elas e se senta em cima. Ele não consegue comer todas aquelas bananas, mas ele não deixa mais ninguém comê-las. Os bebês passando fome e o macaco sentado com uma pilha de banana que ele não conseguirá comer. O que se pensa? Que esse macaco “pirou”, mas “pirou” muito!

Essa metáfora é do cara sentado em bilhões que ele não conseguiria gastar em muitas vidas, nem mesmo seus herdeiros, e um monte de gente passando a vida a um ou dois dólares por dia. Na situação do macaco, o que os pesquisadores fariam? Tirariam o macaco imediatamente e iam tratá-lo, porque ele está doente, com um distúrbio sério. Como é que ele junta banana que ele não consegue se alimentar e deixa os outros com fome? No entanto, essa é a metáfora da condição humana.

Há uma estupidez humana muito grande, que se contradiz com a inteligência humana, até artificial, que produzimos. Acho isso um fator de desequilíbrio muito relevante do nosso tempo. E é a partir dessa injustiça primordial que aparecem as guerras e os conflitos, com um lado querendo manter concentração, riqueza e poder e o outro sendo explorado. Creio que devemos ser um pouquinho mais inteligentes coletivamente e produzirmos uma organização social minimamente racionalizada. Isso não é um problema de sete cabeças, é de fácil resolução, pelo menos no papel. 

Agora, na política real dos homens, é um problema que não tem sido resolvido durante quase toda a história da humanidade, mas que se torna muito agudo nesse momento de populações tão grandes na pobreza e na miséria. O cara faz uma bomba, mísseis inteligentes, bota uns drones com inteligência artificial, aí se abre uma Caixa de Pandora de malefícios que vão afetar toda a população.

Acho que essa é a grande crise dos nossos tempos. Nós temos que desenvolver mais sabedoria a par do conhecimento. Para isso, não é preciso ficar ignorante, porque isso não vai desenvolver essa sabedoria. O que nós temos é que, ao par da ciência, desenvolver também uma sabedoria humanitária. Ao lado da inteligência artificial, temos que dar um reforço enorme na inteligência humana, sobretudo quando vamos tratar de coletividade, porque nossa burrice é vexatória.